quinta-feira, 19 de abril de 2012

Tragédia no lar- Castro Alves

"Na Senzala húmida ,estreita,
Brilha a chama da candeia,
No sapé se esgueira o vento,
E a luz da fogueira ateia.

Junto ao fogo, uma africana,
Sentada , o filho embalando,
Vai lentamente cantando
Uma tirana indolente,
Repassada de aflição.
E o menino ri contente...
Mas treme e grita gelado,
Se nas palhas do telhado
Ruge o vento do sertão.

Se o canto pára um momento,
Chora a criança imprudente...
Mas continua a cantiga...
E ri sem ver o tormento
Daquele amargo cantar.
Ai! triste que enxugas rindo
Os prantos que vão caindo
Do fundo, materno olhar,
E nas mãozinhas brilhantes
Agitas como diamantes
Os prantos do seu pensar...

E voz como um soluço lacerante
Continua a cantar:

"Eu sou como a garça triste
Que mora à beira do rio,
As orvalhadas da noite
Me fazem tremer de frio.

Me fazem tremer de frio
Como os juncos da lagoa;
Feliz da araponga errante
Que é livre, que livre voa

Que é livre ,que livre voa
Para as bandas do seu ninho,
E nas braúnas à tarde
Canta longe do caminho.

Canta longe do caminho,
Por onde o vaqueiro trilha,
Se quer descansar as asas
Tem a palmeira, a baunilha.

Tem a palmeira, a baunilha,
Tem o brejo, a lavadeira,
Tem as campinas, as flores
Tem a relva, a trepadeira.

Tem a relva, a trepadeira,
Todas têm os seus amores,
Eu não tenho mãe  nem filhos,
Nem irmão, nem lar, nem flores."

A cantiga cessou...Vinha da estrada
A trote largo, linda cavalhada
 De estranho viajor,
Na porta da fazenda eles paravam,
Das mulas boleadas apeavam
E batiam na porta do senhor.

Figuras pelo sol tisnadas, lúbricas,
Sorrisos sensuais, sinistro olhar,
Os bigodes retorcidos,
O cigarro a fumegar,
O rebenque prateado
Do pulso dependurado,
Largas chilenas luzidas,
Que vão tinindo no chão,
E as garruchas embebidas
No bordado cinturão.

A porta da fazenda foi aberta;
Entraram no salão.

Porque tremes,  mulher? A noite é calma .
Um bulício remoto agita a palma
Do vasto coqueiral.
Tem pérolas o rio, a noite lumas,
A mata sombras, o sertão perfumes,
Murmúrio o bananal.

Porque tremes,  mulher?Que estranho crime,
Que remorso cruel assim te oprime
E te curva a cerviz?
O que nas dobras do vestido ocultas?
É um roubo talvez que aí sepultas?
É seu filho...Infeliz!...

Ser mãe é um crime, ter um filho- roubo!
Amá-lo uma loucura! Alma de lodo,
Para ti- não há luz.
Tens a noite no corpo, a noite na alma,
Pedra que a humanidade pisa calma,
--Cristo que verga à cruz!

Na hipérbole do ousado cataclismo
Um dia Deus morreu...fuzila um prisma
Do Calvário ao Tabor!
Viu-se então de Palmira os pétreos ossos,
De Babel o cadáver de destroços
Mas lívidos de horror.

Era o relampejar da liberdade
Nas nuvens do chorar da humanidade,
Ou sarça do Sinai,
--Relâmpagos que ferem de desmaios...
Revoluções, vós deles sois os raios,
Escravos, esperai!...

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Porém vós, que no lixo do oceano
A pérola de luz ides buscar,
Mergulhadores deste pego insano
Da sociedade, deste tredo mar.
Vinde ver como se rasgam as entranhas
De uma raça de novos Prometeus .
Ai!vamos ver guilhotinadas almas
Da senzala nos vivos mausoléus.

--Escrava, dá-me teu filho!
Senhores, ide-lo ver:
É forte e de uma raça bem provada,
Havemos tudo fazer.

Assim dizia o fazendeiro, rindo,
E agitava o chicote...
A mãe que ouvia
Imóvel, pasma, doida, sem razão!
À Virgem Santa pedia
Com prantos por oração;
E os olhos no ar erguia
Que a voz não podia, não.

--Dá-me teu filho! repetiu fremente
O senhor de sobrolho carregado.
--Impossível!...
--Que dizes,miserável?!
--Perdão, senhor!perdão!meu filho dorme...
Inda há pouco o embalei, pobre inocente,
Que nem sequer pressente
Que ides...
--Sim , que o vou vender!
--Vender?!...Vender meu filho?!

Senhor, por piedade, não
Vós sois bom antes do peito
Me arranqueis o coração!
Por piedade, matai-me!Oh! É impossível
Que roubem da vida o único bem!
Apenas sabe rir é tão pequeno!
Inda não me sabe chamar?Também
Senhor, vós tendes filhos ...quem não tem?

Se alguém os quisesse vender
Havíeis muito chorar
Havíeis muito gemer,
Diríeis a rir --Perdão?!
Deixai meu filho...arrancai-me
Antes a alma e o coração!

--Cala-te miserável!Meus senhores,
O escravo podeis ver...

E a mãe em pranto aos pés dos mercadores
Atirou-se a gemer.
--Senhores!basta a desgraça
De não ter pátria nem lar,
De ter honra e ser vendida
De ter alma e nunca amar!

Deixai à noite que chora
Que espere ao menos a aurora,
Ao ramo seco uma flor;
Deixai o pássaro ao ninho
Deixai à mãe o filhinho,
Deixai à desgraça o amor.

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Porém nada comove homens de pedra
Sepulcros onde é morto o coração
A criança do berço ei-los arrancam
Que os bracinhos estende e chora em vão!

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Assim a escrava da criança ao grito
Destemida saltou,
E a turba dos senhores aterrada
Ante ela recuou.

--Nem mais um passo, cobardes!
Nem mais um passo!ladrões!
Se os outros roubam as bolsas ,
Vós roubais os corações!...


Entram três negros possantes,
Brilham punhais traiçoeiros.
Rolam por terra os primeiros
Da morte nas contorções.


Um momento depois a cavalgada
Levava a trote largo pela estrada
A criança a chorar.
Na fazenda o azorrague então se ouvia
E aos golpes- uma doida respondia
Com frio gargalhar!..."

(António Frederico de Castro Alves- 1847-1871)







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