sábado, 7 de abril de 2012

Toada de Portalegre-José Régio

Toada de Portalegre

Em Portalegre,  cidade
Do Alto Alentejo,  cercada
De serras, ventos, penhascos, oliveiras e sobreiros,
Morei numa casa velha,
Velha, grande,tosca e bela,
À qual quis como se fora
Feita para eu morar nela...


Cheia dos bons e maus cheiros
Das casas que têm história,
Cheia da ténue, mas viva, obsidiante memória
De antigas gentes e traças,
Cheia de sol nas vidraças
E de escuro nos recantos,
Cheia de medo e sossego,
De silêncios e de espantos, Quis-lhe bem, como se fora
Tão feita ao gosto de outrora
Como ao do meu aconchego.


Em Portalegre, cidade
Do Alto Alentejo, cercada
De  montes e oliveiras,
Do vento suão queimada,
(Lá vem o vento soão!,
Que enche o sono de pavores,
Faz febre, esfarela os ossos ,
Dói nos peitos sufocados,
E atira aos desesperados
A corda com que se enforcam
Na trave de algum desvão...)
Em Portalegre , dizia,
Cidade onde então sofria
Coisas que terei pudor
De contar seja a quem for,
Na tal casa tosca e bela
À qual quis como se fora
Feita para eu morar nela,
Tinha então por única diversão,
Uma pequena varanda
Diante de uma janela.
Toda aberta ao sol que abrasa,
Ao frio que tolhe , gela
E ao vento que anda , desanda
E sarabanda e ciranda
Derredor da minha casa,
Em Portalegre , cidade
Do Alto Alentejo, cercada
De serras, ventos, penhascos e sobreiros,
Era uma bela varanda,
Naquela bela janela!


Serras deitadas nas nuvens,
Vagas e azuis da distância,
Azuis, cinzentas, lilases,
Já roxas quando mais perto,
Campos verdes e amarelos,
salpicados de oliveiras,
E que o frio, ao vir, despia,
Rasava, unia
Num mesmo ar de deserto
Ou de longinquas geleiras,
Céus que lá em cima estrelados,
Boiando em lua, ou fechados
Nos seus turbilhões de trevas,
Pareciam engolir-me
Quando, fitando-os suspenso
Daquele silêncio imenso,
Eu sentia o chão a fugir-me,
-Se abriam diante dela
Daquela
Bela
Varanda
Daquela
Minha
Janela
Em Portalegre, cidade
Do Alto Alentejo, cercada
De serras, ventos, penhascos, oliveiras e sobreiros,
Na casa em que morei, velha,
Cheia de maus e bons cheiros
Das casas que têm história,
Cheia de ténue, mas viva,obsidiante memoria
De antigas gentes e traças
Cheia de sol nas vidraças
E de escuro nos recantos,
Cheia de medo e sossego,
De silêncios e de espantos,
À qual quis como se fora
Tão feita ao gosto de outrora
Como ao do meu aconchego...


Ora , agora
Que havia o vento soão
Que enche o sono de pavores,
Faz febre, esfarela os ossos,
Dói nos peitos sufocados,
E atira aos desesperados
A corda com que se enforcam
Na trave de algum desvão,
Que havia o vento soão
De se lembrar de fazer?
Em Portalegre, dizia,
Cidade onde então sofria
Coisas que terei pudor
De contar seja a quem for,
Que havia o vento soão
De fazer
Senão trazer
Àquela minha varanda
Daquela
Minha
Janela
O testemunho maior
De que Deus é protector
Dos seus
Que mais faz sofrer?


Lá num craveiro que eu  tinha,
Onde uma cepa cansada
Mal dava cravos sem vida
Poisou qualquer sementinha
Que o vento que anda,  desanda,
E  sarabanda e ciranda,
Achara no ar perdida,
Errando entre  terra e céus...
E, louvado seja Deus!
Eis que uma folha miudinha
Rompeu, cresceu, recortada,
Furando a cepa cansada
Que dava cravos sem vida
Naquela
Bela
Varanda
Daquela
Minha
Janela
Da tal casa tosca e bela
À qual quis como se fora
Feita para eu morar nela...


Como é que o vento soão
Que enche o sono de pavores,
Faz febre, esfarela os ossos,
Dói nos peitos sufocados,
E atira aos desesperados
A corda com que se enforcam
Na trave de algum desvão,
Me trouxe a mim que, dizia,
Em Portalegre sofria
Coisas que terei pudor
De contar seja a quem for,
Me trouxe a mim essa esmola,
Esse pedido de paz
Dum Deus que fere... e consola
Com o próprio mal que faz?


Coisas  que terei pudor ,
De contar seja a quem for
Me davam então tal vida
Em Portalegre, cidade
Do Alto Alentejo, cercada
De serras, ventos, penhascos,oliveiras e sobreiros
Me davam então tal vida
-Não vivida!Mas morrida
No tédio e no desespero,
No espanto e na solidão
Que a corda dos derradeiros
Desejos dos desgraçados
Por noites do vento soão
Já várias vezes tentara
Meus dedos verdes suados...


Senão quando o amor de Deus
Ao vento que anda, desanda
E sarabanda e ciranda,
Confia uma sementinha
Perdida entre terra e céus,
E o vento a traz à varanda
Daquela
Minha
Janela
Da tal casa tosca e bela
À qual quis como se fora
Feita para eu morar nela!


Lá no craveiro que eu tinha,
Onde uma cepa cansada
Mal dava cravos sem vida,
Nasceu essa acáciazinha
Que depois foi transplantada   
E cresceu, dom do meu Deus!
Aos pés lá da estranha casa
Do largo do cemitério
Frente aos ciprestes que em frente
Mostram os céus,
Como dedos apontados
De gigantes enterrados...


Quem desespera dos homens
Se a alma lhe não secou,
A tudo transfere a esperança
Que a humanidade frustrou:
E é capaz de amar as plantas,
De esperar nos animais,
De humanizar coisas brutas,
E ter criancices tais,
Tais e tantas!
Que será bom ter pudor
De as contar seja a quem for!


O amor , a amizade e quantos
Sonhos de cristal sonhara,
Bens deste mundo!Que o mundo me levara,
De tal maneira me tinham,
Ao fugir-me
Deixando-me só , nulo, atónito
A mim que tanto esperara
Ser fiel
E  forte
E firme
Que não era mais que morte
A vida que então vivia,
auto-cadáver...


E era então que sucedia
Que em Portalegre, cidade
Do Alto Alentejo, cercada
De serras, ventos, penhascos, oliveiras e sobreiros
Aos pés lá da casa velha
Cheia de maus e bons cheiros
Das casas que têm história,
Cheia da ténue, mas viva, obsidiante memória
De antigas gentes e traças,
Cheia de sol nas vidraças
E de escuro nos recantos,
Cheia de medo e sossego,
De silêncios e de espantos,
-A minha acácia crescia.


Vento soão! Obrigado...
Pela doce companhia
Que em teu hálito empestado
Sem eu sonhar me chegava!
E a cada raminho novo
Que a tenra acácia deitava,
Será loucura!...mas era
Uma alegria
Na longa e negra apatia
Daquela miséria extrema
Em que vivia,
E vivera,
Como se fizera um poema
Ou se um filho me nascera.


(José Régio-Fado)